Não sei se sou a estranha no ninho, é o mais provável e não quero me sentir especial, mas também me pergunto se, às vezes, as pessoas ao redor enlouqueceram e se eu, como o personagem principal de 1984, Winston Smith, estou sã, mas fingindo corroborar com a loucura do Grande Irmão para não ser julgada.
Enfim, era um dia de estágio do curso de Nutrição e fomos visitar hortas solidárias organizadas pelos moradores de um bairro. Enquanto visitávamos, a conversa fluía entre minhas colegas e o tema era gravidez.
Minha colega está grávida, e naquele dia sua barriga já despontava e denunciava seu estado, enquanto a minha permanecia oculta. Mas todos ali sabiam que eu também estava fabricando um bebê. Enquanto fazia as anotações da visita, observando pés de alface, morango, alecrim e manjericão, ouvia a conversa:
– Eu tô tentando, como você fez?
– Ah eu baixei o aplicativo e acompanhava minha ovulação por ali, no dia que estava ovulando fazia acontecer.
Risadas.
Minha colega vira para mim e pergunta:
– E você? Como fez? Sabia o dia da ovulação também?
Bom, eu não vou fingir pureza, mas fiquei sem graça, afinal, um um ato íntimo estava sendo discutido entre jabuticabeiras, montes de terra, pás e herbicidas.
– Bom, eu até tenho o aplicativo, mas nunca fiquei acompanhando. Sabe como é, fiz como os mamíferos fazem.
Fiz uma piadinha pra descontrair e tirar o foco de mim, visto que entendo que elas, uns amores, pensam como a maioria, eu é que sou a esquisitona e cá estou manifestando minhas ideias esquisitas – você que lute ou cancele a inscrição da Carta.
Lembrei de uma música que adoro enquanto escrevo esta Carta, Let’s do it:
Birds do it, bees do it
Even educated fleas do it
Let's do it, let's fall in love
In Spain, the best upper sets do it
Lithuanians and Letts do it
Let's do it, let's fall in love
Interpreto que o “Let’s fall in love” é um jeito romântico e elegante de falar sobre o ato sexual, seria um “fazer amor”.
E o que ela tem a ver com o assunto?
Acredito que a maneira como a sociedade funciona, hoje, principalmente após a entrada da mulher no mercado de trabalho e o advento dos métodos contraceptivos, fez com que aquilo que era consequência natural de um ato, um “let’s fall in love” se tornasse uma escolha artificial.
O que quero dizer? No passado, o “natural” era casar, amar aquela pessoa e colher os frutos daquele amor, o filho. Claro, sabemos que nem tudo eram flores, não estou julgando que “no passado era melhor”, ok? Mas hoje, assim como no passado, tampouco as coisas são maravilhosas.
Depois, com “liberdade” para ter relações em relacionamentos casuais, já no mercado de trabalho, as mulheres passaram a, artificialmente, escolher ter filhos ou não. E me refiro às mulheres porque este é um poder que está em nossas mãos, não é uma questão de machismo, mas de fisiologia; do ato sexual à concepção, nós é quem definimos se usaremos ou não o método contraceptivo e se permitiremos ou não que aquela vida se desenvolva. Muitas acreditam que isso é injusto, eu, particularmente, acho que não tem a ver com justiça, mas como a vida é. E se a realidade se apresenta dessa forma e é imutável, cabe a nós agirmos com responsabilidade, não é?
Mas o que era consequência virou um sonho para uns e pesadelo para outros. Hoje vou focar no primeiro grupo, entretanto, o que acho que nos falta entender, e que deixaria a vida de todos muito mais leve, é:
Filhos não são sonhos e tampouco pedadelos, são realidade.
Não estou dizendo que você não possa pensar nesta possibilidade, aliás, se você transa, deve pensar sobre o tema, afinal, não há método contraceptivo 100% eficaz, logo,um “E se…” deve passar pela sua cabeça. Ademais, se pensa em casar, é fundamental conversar sobre o tema antes de juntar as escovas de dente porque é um valor muito profundo e muito sério, não é algo do tipo “Eu me irrito, mas relevo, porque ele deixa toalha molhada em cima da cama e aperta a pasta de dente no meio do tubo”. Estamos falando de duas pessoas gerarem uma vida e serem responsáveis por ela.
Acredito que tanto quem vê filho como um sonho a realizar como quem o rejeita a qualquer custo objetifica aquilo que é mais sagrado: uma vida. Sonhar com um filho é tão ruim quanto idealizar o homem ou mulher perfeita, você se frustra porque, oras, não passa de uma ideia, e as pessoas não nasceram para atender nossas expectativas.
Quem vê um filho como um sonho, uma meta a realizar, cria expectativas e deposita esperança de felicidade em um ser humano. É lógico que esperamos que os frutos sejam bons, ninguém aqui quer o pior e não tenho dúvidas de que olhar para o ser a que você deu origem aqueça o coração e proporcione uma alegria inexprimível, porém, não considero sensato fantasiar e sonhar com isso, por quê?
Porque não temos controle sobre a vida e não há um script dizendo que “tudo vai dar certo”, quem sonha com um filho geralmente não conta com a possibilidade de um aborto, de uma má formação, de um problema neurológico ou qualquer coisa de cunho negativo. Tampouco sonha que aquele filho queira o oposto do que foi planejado para ele, por exemplo, “Quero que meu filho estude Medicina, faça intercâmbio, case e tenha uma família”. Se você não acredita que haja pais que pensam dessa forma, acredite, eles existem.
E então a pergunta é: e se o bebê nasce com uma doença ou, se com saúde, não corresponde às expectativas dos pais? O que ele se torna? Um pesadelo? Um ingrato por que os pais “fizeram de tudo” por ele?
Talvez o leitor pense que é muita frieza da minha parte e que digo isso porque estou grávida: “Pra você é fácil, agora imagine quem sonha em ter filhos e não pode tê-los”. No entanto, até pouco tempo eu sabia que não era impossível, mas que as possibilidades de isso acontecer eram baixas; já havia recebido, inclusive, sugestões de métodos como fertilização in vitro, algo que jamais faria porque vai de encontro com o que acredito – e creio que a vida é um dom Divino. Ou seja, até pouco tempo eu não contava com isso e, claro, me entristecia, mas entendo que devemos aceitar nossa realidade tal como é, com ou sem filhos – e espero que você entenda que aceitação nem sempre está associada à comodismo.
Além disso, quando enxergamos o filho como uma meta a ser atingida, não amamos, mas instrumentalizamos a pessoa com quem nos deitamos.
Em vez de praticar o ato porque se sente conectado a quem ama, você o pratica com hora marcada com um objetivo definido: gerar uma vida. Do ato ao método, tudo se torna artificial. Depois de consumado, imagino, o que deve ficar na cabeça é: “Será que agora foi? Vingou?”. E eu acho que isso pode ser muito neurotizante para um casal. Acredito, inclusive, que pode criar um distanciamento, um “está faltando alguma coisa para nossa família ser completa” se ambos não souberem lidar com essa possibilidade. Pior, pode gerar ressentimento – e divórcio – se ele ou ela não puder “me dar um filho”, como se o outro fosse um produto que não funciona e, portanto, pode ser descartado.
Desde que fiquei grávida, confesso, frequentemente fujo do assunto gravidez justamente por essa abordagem cheia de expectativas. No início cheguei a acompanhar alguns perfis no Instagram de profissionais da área, mas para mim não funcionou, eram tantas informações e imposições, “faça fisioterapia pélvica”, “faça curso de amamentação”, “você tem que escolher parto natural”, “cuidado com açúcar”, “sabia que seu pé pode aumentar na gestação?”, “use protetor solar por causa do melasma”, “50 motivos pelos quais você deve suplementar ferro”, “contrate uma doula”, “se não quer ter diástase abdominal, faça isto”, que preferi seguir o que Antonio Machado escreveu na poesia Cantares:
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar
Deletei tudo e decidi buscar informações à medida em que as dúvidas surgissem no meu caminho – e elas surgem sem a urgência mercadológica de quem pretende vender algum serviço ou produto relacionado à maternidade. Não me leve a mal, acho que os profissionais que trabalham nessa área devem vender seu peixe, mas justamente por trabalhar com publicidade entendo que muitas crenças são alteradas para que sintamos necessidade e/ou desejo daquilo que, no passado, era irrelevante: quem, há dez anos, fazia fisioterapia pélvica? Chá revelação? Ou ensaio gestante? Ou contratava um fotógrafo para fotografar o parto1? Ou “mêsversário”? Ou ensaio fotográfio mensal bebê newborn? Fique tranquilo, se você fez ou deseja fazer essas coisas, tudo bem, a vida não é feita só de coisas necessárias – mas ao mesmo tempo é preciso refletir do que se alimenta todo esse mercado e se, às vezes, estamos agindo por impulso, seguindo a manada e as expectativas alheias.
Outro fator que pode ser um banho de água fria para quem sonha com filhos é a realidade pós-parto. Como li certa vez, durante a gestação a mulher se torna o centro de tudo, ela é cuidada, bajulada e tem seus desejos realizados, contudo, uma vez que o bebê nasce ele é quem demanda toda a atenção, e não uma atenção qualquer, mas a dela, da mãe.
No curto tempo em que acompanhei os perfis de maternidade li muitos relatos de mulheres que “sonhavam com a maternidade, mas que não sabiam que seria tão difícil”. De fato, nada substitui a vivência da dificuldade, ainda que seja possível prever algumas coisas, por exemplo, uma coisa é imaginar um bebê que chora sem parar sem que saibamos o motivo; outra, porém, é ouvir esse choro e vivenciar essa aflição às 4 da manhã. Mas sinto que há pessoas que ficam apenas no mundo dos sonhos e não meditam sobre a parte difícil dessa realidade, daí surge a frustração. Recentemente ouvi o corte de uma atriz num podcast e ela disse que não gostava da função de ser mãe: “Não gosto de acordar cedo, não gostei de ficar grávida, não gostei da minha pele cheia de manchas, não gostei de pausar da minha carreira”.
Não vamos romantizar, mas voltemos à questão inicial: esta é uma realidade indissociável da maternidade, essas dificuldades vão existir e é preciso meditar sobre elas, inclusive, pensar sobre como lidar com esse “não gostar”, porque passar por essa fase já é difícil por si só, mas atravessá-la com desgosto torna tudo ainda mais pesado.
E sinceramente: o que nesta vida não é uma “função”? Trabalhar e ter clientes ou chefes é uma função, manter um relacionamento agradável é uma função, ter uma alimentação saudável é uma função, fazer atividade física é uma função, fazer faculdade é uma função. E quando digo função não estou associando a algo negativo, mas algo que vai exigir mais do que ficar deitado eternamente em berço esplêndido. A pergunta que nos devemos fazer é: eu estou disposto a tolerar esta função?
Costumo dizer que uma das perguntas que devemos fazer ao entrar num relacionamento é justamente esta: eu sou capaz de tolerar os defeitos desta pessoa? É o tipo de coisa com que posso lidar até que a morte nos separe2? Porque todos temos nossos valores e limites, e se os defeitos do outro se chocam com eles certamente não vai durar.
E essa mesma premissa pode ser usada para a questão dos filhos: você está disposto a lidar com a parte difícil da maternidade ou paternidade? Ou você imagina só o bebê cheiroso, as roupinhas fofas (não vou negar, é irresistível), o quartinho decorado e os momentos de alegria?
Como li certa vez, há pessoas que querem filhos, mas não querem ser pai ou mãe. Infelizmente, observando a realidade, percebo que isso é verdade, não são poucas as crianças órfãs de pais vivos, de pais que, apesar da presença física, estão emocionalmente desconectados das necessidades da criança, crendo piamente que basta suprir as necessidades materiais.
Afinal, o que pretendo com esta Carta? Apedrejar quem “sonha” ter filhos? Não, apenas trazer uma reflexão e uma perspectiva distinta daquelas a que estamos acostumados, e creio que estamos habituados a pensar que realizar todos os nossos sonhos é um direito. Mas todo direito gera um dever em contrapartida, e quem nos deve nossos sonhos? E, principalmente, quem nos deve uma vida, um filho?
Podemos e devemos sonhar, contudo, nossos pés também precisam estar fincados no chão para que, caso as coisas não saiam como o esperado, a gente não flutue e saia fora de órbita, amargurando uma vida “que poderia ter sido e não foi”. Diga para mim: quantas coisas nesta sua vida saíram exatamente como você planejou? Quantas rotas foram desviadas levando você a um destino inesperado, mas bonito e surpreendente, a ponto de você olhar para trás e pensar: “Ainda bem que não aconteceu como eu queria”? Comigo acontece até hoje, graças a Deus.
Creio que encarar os filhos como uma realidade, em vez de um sonho distante ou um pesadelo iminente, torna a vida mais leve, sem a ansiedade da espera no primeiro caso nem o medo da chegada no segundo. Já carregamos nossa própria cruz, por que pesá-la com o que está fora do nosso alcance?
Gosto muito da expressão latina omnia in bonum, “tudo contribui para o bem”, ela transmite a ideia de que mesmo as dificuldades ou situações adversas concorrem para o nosso bem. Os “sonhos” que não acontecem ou os “pesadelos” que se concretizam não foram feito para nos humilhar e entristecer, mas para nos transformar.
Desculpe, não considero razoável levar um ilustre desconhecido para fotografar a mulher e a criança num momento visceral, íntimo e vulnerável. Pior ainda quando essas imagens vão parar nas redes sociais.
Para mim não faz sentido entrar num relacionamento com prazo de validade.