Confesso, leitor, que ultimamente meu cérebro anda sem nutrientes suficientes para alimentar a newsletter – todas as minhas ideias parecem chatas, batidas e repetitivas e, confesso, temo cansá-lo.
Hoje, portanto, a Carta terá como base um post antigo do meu Instagram chamado “O mal do endeusamento da experiência gastrônomica” – mas esta será uma versão mais aprofundada.
Se você não me conhece, certamente não sabe que cozinhar é uma das minhas paixões – a cozinha é o meu refúgio, meu momento de reflexão, meu exercício de paciência. Não sou nenhuma chef, mas cozinho direitinho e aprecio a comida feita com capricho e com bons ingredientes.
Mas tenho a impressão de que nos últimos anos houve um boom de programas relacionados à culinária – como o famoso MasterChef que, por sinal acho chato –, bem como muitos conteúdos nas redes sociais e de pesquisa dedicados à experiências gastrômicas mundo afora: “A melhor pizza de Nápolis”, “O melhor cookie de NY”.
Não serei hipócrita de afirmar que não busco lugares legais, aconchegantes e saborosos para visitar, aliás, o dia em que visitar Nova York pretendo conhecer a Levain Bakery, que se intitula como “New York City's Most Famous Cookies” – e aqui serei zero modesta: podem ser os mais famosos de NY, mas será que são mais gostosos do que os meus?
Mas o motivo pelo qual pretendo ir a Nova York não é visitar uma padaria, ela é apenas entra no rolo porque, bem, está ali e é conhecida. O que me deixa intrigada é a seriedade com que as pessoas vêm tratando o próprio estômago.
Ainda que eu seja estudante de Nutrição, não acho que a comida deva ocupar um lugar central em nossa vida: comer e nutrir-se é importante, contudo, assim como a alimentação focada apenas na saúde é um disparate, também o é o endeusamento culinário.
Nada mais chato do que aquela pessoa que sempre acha uma funcionalidade saudável no alimento: “As beterrabas das Ilhas Maurício são ricas em antioxidantes e se você espremê-las num copo com água gelada (tem que ser gelada, caso contrário, não funciona), viverá até o retorno de Cristo”.
Mas também nada mais constrangedor do que aquela pessoa que descreve um prato de comida como se estivesse descrevendo algo transcendental: “Nossa, cara, você tem que ir no bistrô, eu pedi um conchiglione com recheio de queijo Brie e estava ma-ra-vi-lho-so. E a sobremesa? Um petit gâteau de caramelo com flor de sal incomparável. Sério, se você não for lá e não experimentá-los, esquece, perdeu tempo”.
Tem também a tribo do vinho: “Rubi profundo na cor. Pimentão no aroma. Na boca tem bom corpo, taninos macios, álcool e acidez em equilíbrio. Retrogosto médio persistente com final harmonioso1”.
Pimentão no aroma, final harmonioso. Wtf?
Tá, mas qual é a tua, Bianca? Deixa o povo se esbaldar no rango, pô!
É que, na minha irrevante opinião, a gastronomia é entretenimento para envolver pessoas, e não o estômago.
Há sabores que de fato parecem nos aproximar do Criador na medida em que tocam momentaneamente nossa alma; o cheiro de uma boa comida desperta sentimentos, lembranças, nostalgia – e note que essa memória olfativa está muito mais relacionada às pessoas envolvidas na situação do que aos alimentos em si.
O cheiro do brigadeiro na panela pode lembrá-lo das festinhas de aniversário da infância em que a avó, a mãe e as tias se amontoavam na cozinha para prepará-los e enrolá-los enquanto você, no máximo, ajudava a abrir as fôrminhas.
O meu marido falou esses dias, por exemplo, que o cheiro de fumaça de churrasco o fazia lembrar a casa da nonna, lugar onde aconteciam as reuniões de família em que o tio assava a carne enquanto as crianças brincavam.
Sem dúvida podemos afirmar com nostalgia que sentimos falta do sabor do brigadeiro da avó e do churrasco do tio, no entanto, o que os deixa mais gostosos é o tempero da convivência. Neste artigo aqui a nutricionista Sueli Aparecida Moreira afirma o seguinte:
Comensalidade deriva do latim "mensa" que significa conviver à mesa e isto envolve não somente o padrão alimentar ou o quê se come mas, principalmente, como se come.
Assim, a comensalidade deixou de ser considerada como uma consequência de fenômenos biológicos ou ecológicos para tornar-se um dos fatores estruturantes da organização social. A alimentação revela a estrutura da vida cotidiana, do seu núcleo mais íntimo e mais compartilhado. A sociabilidade manifesta-se sempre na comida compartida (6; 7).
Preste atenção nas palavras: intimidade, sociabilidade, compartilhado, comida compartida.
No mesmo artigo, ela cita um dado interessante:
Em contrapartida, a falta de companhia para comer ou solidão foi um dos fatores apontados, em estudo realizado na Grã-Bretanha, que motivou os jovens a consumirem dietas de pior qualidade. Um em cada três jovens, com idade entre 15 e 24 anos, recorria ao consumo de junk food como consolo para problemas na vida amorosa. Mais de 60% deles disseram comer chocolate para aliviar a desilusão com relacionamentos e 43% deles disseram ter visitado mais as redes de fast food ao enfrentar esse tipo de problema (12).
Quem nunca, né? Como mulher assumo aos quatro ventos que nada como um docinho para dar um alento ao espírito triste e à falta de esperança que só a TPM consegue proporcionar.
Porém, já sabemos que beber, tomar um pote de sorvete na frente da tv ou comer uma pizza inteira não aliviam nosso sofrimento. Aliás, seria fácil e gostoso se assim fosse a prescrição: para pé na bunda consumir 50g de chocolate ao dia; para frustrações no trabalho, meia pizza de pepperoni no jantar 3x por semana.
Agora, você percebe uma certa ligação entre o endeusamento gastrônomico e à solidão e vazio modernos? Se tiver paciência para ler todo o artigo, verá que o ato de comer já não tem mais aquela importância e aquele envolvimento que vai da preparação do alimento ao seu desfrute em grupo.
O ato de cozinhar toma tempo.
Você precisa ir ao mercado comprar os ingredientes, cortá-los, descongelá-los e organizá-los antes da preparação; precisa colocar a toalha, os pratos, os copos, talheres e os guardanapos na mesa, e depois precisa tirar esses mesmos objetos, lavá-los e guardá-los. Se estamos fazendo isso com menos frequência, significa que esse mesmo tempo será preenchido com outra coisa.
No livro Nação Dopamina2, a autora fala sobre o aumento do tempo de ócio proporcionado pela tecnologia e facilidades domésticas e questiona até que ponto isso é bom; descansar é preciso, mas quando esse descanso é preenchido apenas por “atividades dopaminérgicas” o resultado é, no longo prazo, o vício – em comida, remédio, álcool, pornografia, jogo e entretenimento barato.
E é bem possível que esse endeusamento gastronômico seja um sintoma de quem perdeu a temperança e precisa preencher o vazio e o tempo fora da cozinha com o prazer momentâneo que a comida “do mundo” proporciona.
Só que após a digestão o vazio continuará ali e, para piorar as coisas, quanto maior a frequência com que cedemos aos desejos do paladar, mais ele se tornará nosso senhor e mais exigirá: o filet mignon não terá mais gosto e você desejará o wagyu; o camarão precisará evoluir para lagosta; o PF da esquina embrulhará o estômago.
Em nosso imaginário há aquela ideia de “se fosse milionário comeria só filet mignon e lagosta”, porém, depois de um tempo nos sentiríamos como o personagem do espisódio A Nice Place to Visit do clássico Twilight Zone3: perceberíamos que o “paraíso” gustativo é, na verdade, o inferno.
Não acredita? Coma todos os dias o seu prato favorito e me diga se, passado algum tempo, ele continua proporcionando o mesmo prazer.
Mas a conclusão a que pretendo chegar, caro leitor, é a de que devemos prestar mais atenção na maneira com que nos comportamos diante da comida; se saímos para jantar com alguém pensando no filet mignon, no polvo ou no status do restaurante, é preciso acender um alerta: a pessoa com quem você sai deve ser a atração principal, e não a refeição em si.
Se já “enjoamos” de visitar aquele restaurante requintado da cidade e precisamos buscar um lugar novo e gostoso sem que nos submetamos ao básico e “sem graça” feijão, arroz, ovo e salada, significa que nosso estômago, e não nosso cérebro, é o senhor.
Finalizo esta Carta com as palavras de alguém que conseguiu sintetizar o que eu percebia, mas não conseguia expressar:
679 A gula é um vício feio. - Não te dá um pouquinho de riso e outro pouquinho de náusea ver esses senhores graves, sentados à volta da mesa, sérios, com ares de rito, metendo gorduras no tubo digestivo, como se aquilo fosse “um fim”?
680 À mesa, não fales de comida; isso é uma grosseria, imprópria de ti. - Fala de coisas nobres - da alma ou do entendimento -, e terás enaltecido esse dever.4
Alimente-se bem, coma coisas gostosas, mas não esqueça que a comida não deve ser o seu Deus.
Esse é real, tá? Tirei da avaliação de um vinho de que gosto lá no site Vivino.
Há um review tímido e amador desse livro no meu Instagram, mas você também pode assisti-lo no YouTube clicando aqui.
Caminho - Josemaria Escrivá