Você acorda, prepara seu café e, erroneamente, em vez de contemplar o silêncio matinal, decide ir além do estímulo da cafeína e abre a porcaria do Instagram.
Passa pelos stories para interagir com os amigos, compartilha reels de uma cachorra dando de mamar para filhotes fofinhos de gatos, salva uma receita que provavelmente nunca irá fazer porque amanhã já surge outra pornfood que faz você esquecer da anterior.
Até aqui tudo bem, se você gastou cinco minutos, e não trinta nessa atividade, é até saudável, afinal, foi através do Instagram que angariei pessoas como você para ler minhas newsletter e onde conheci gente muito boa, inteligente e generosa.
Vale sempre lembrar que o Instagram, e todas as redes sociais em geral, são um meio, uma ferramenta que podemos usar tanto para o bem quanto para o mal, de forma funcional ou disfuncional – o duro é achar o equilíbrio.
O raio é que basta uns segundos de tédio para o seu dedo tocar num conteúdo que você nem queria ver e já era, agora o algoritmo vai te mandar incansavelmente tudo relacionado ao tema. Se você for honesto, nem foi tédio, foi sua curiosidade mórbida que buscou ativamente pela fofoca; assumo, volta e meia me autoflagelo com espiadas furtivas no perfil de pessoas de que não gosto, desculpa, sou humana – mas também aceito que mesmo sendo totalmente irrelevante na internet, talvez alguém entre no meu perfil e me odeie também.
E os perfis que mais me cansam são os da teologia da prosperidade, é quase um estudo social.
Não inventei esse termo, ele já existe e fala a respeito da doutrina teológica neopentecostal que prega que a prosperidade material é um desejo de Deus para seus fiéis. Ao ler o artigo de autoria da Carolyne Santos Lemos1 para uma revista de teologia da PUC, entendi que essa “ideologia” começou nos Estados Unidos com pastor William Kenyon, que enfatizava o poder da mente e da palavra:
O poder da mente pressupõe que toda falta de fé necessariamente provoca miséria e doença,resultados do pecado. A fé em Jesus de Nazaré envolve a busca pela riqueza, pelas boas condições de saúde. Qualquer sofrimento indica ausência de fé. Esses postulados caracterizam a confissão positiva.
Posteriormente as ideias de Kenyon foram plagiadas por Kenneth Hagin, e se você procurá-lo no Google ou no Youtube, achará uma infinidade de material sobre ele, inclusive uma legião de fãs, afinal, foi ele quem criou o Movimento Palavra de Fé. No Brasil, as vertentes dessa teologia foram disseminadas por Edir Macedo.
Esta Carta não visa abordar as origens da teologia da prosperidade, no link da primeira nota de rodapé você encontra o artigo completo que citei caso tenha interesse em se aprofundar.
Quero falar não de pastores, mas dos psicólogos, marketeiros, copywriters e outros profissionais que não querem se passar por coaches – compreensível, a profissão já está maculada –, mas cuja retórica e os péssimos cursos que vendem têm a mesma promessa: te livrar desta coisa vergonhosa e terrível que você não deseja nem para o seu pior inimigo.
Tortura? Cadeira elétrica? Não, a falta de grana.
Os perfis em que me autoflagelo seguem à risca a teologia da prosperidade porque pregam que a coisa mais importante que você deve fazer nesta vida é prosperar e ascender financeiramente. Alguns, provavelmente desejando aliviar a própria consciência, afirmam que “Não é por você, é por sua família. Já pensou sua filha precisar de uma cirurgia e você ter de ir ao SUS?”.
Acabei de copiar, ipsis litteris, a legenda de um reels de um desses perfis:
A verdade é que o dinheiro traz paz.
Você tem mais possibilidades para enfrentar qualquer problema da vida.
O resto eu entrego nas mãos de Deus.
Não quero fazer uma ode à pobreza e à miséria, sabemos que há situações extremas e marginalizantes, mas será mesmo que o dinheiro traz paz? Será que fica necessariamente mais fácil enfrentar qualquer problema da vida com ele? Entregar o resto na mão de Deus? Vale lembrar do Evangelho de Mateus, ninguém pode servir a dois senhores.
O dinheiro traz sensação de paz e aumenta as possibilidades de enfrentar qualquer problema para quem acha que tudo pode ser comprado. O filho está com problemas psicológicos? Pago um psicólogo, um psiquiatra e os melhores profissionais. Estou acima da peso? Compro Ozempic, uma bariátrica ou uma plástica. Estou triste? Vou ao shopping tomar um banho de loja e depois jantar num restaurante chiquérrimo. Levei um pé na bunda? Vou para Paris tirar foto de roupão tomando champagne no Plaza Athénée para mostrar que minha vida não parou e que sofrer na esbórnia é muito melhor.
Antes que você fique chateado comigo, não estou afirmando que não podemos pagar para obter ajuda, oras, as pessoas me pagam para que eu as ajude criando anúncios e campanhas; se me graduar em Nutrição, as pessoas me pagarão para ajudá-las a se alimentarem melhor. O problema está em colocar toda a fé no dinheiro e não lapidar o seu espírito para agir e enfrentar as adversidades. Você eu não sei, mas como uma católica meia boca, conto com a ajuda de Deus para isso, para que ilumine minha inteligência fazendo com que eu busque soluções com a cabeça e, em última instância, com o bolso.
Voltemos aos exemplos anteriores: quantos pais conversam com os filhos? Porque já presenciei inúmeras histórias de filhos órfãos de pais vivos, de filhos que enfrentaram sozinhos o bullying, a rejeição, a autoestima baixa típica da adolescência completamente sozinhos, porque nem o melhor profissional substitui o amor e a atenção dos pais. Quem sabe, se esses pais não fossem tão abastados, buscariam a solução não nos bens materiais e nas consultas caras, mas dentro de si. Quem sabe sentariam e conversariam com os filhos, passariam mais tempo com eles e até estudariam o problema para encontrar uma solução.
Todo mundo conhece a história de alguém acima do peso que pula de remédio em remédio, de nutricionista em nutricionista e que está sempre comprando uma pílula mágica para emagrecer. Estar acima do peso é algo realmente complicado e profundo, envolve comportamento, hábitos arraigados da infância, questões psicológicas como ansiedade, carência, depressão. Diria que, dependendo do caso, é realmente difícil emagrecer sem um suporte profissional e, às vezes, sem uma cirurgia bariátrica. Mas é impossível? Não, pode ter certeza de que você vai encontrar na internet pessoas que conseguiram – o que não invalida quem precisou da cirurgia, pelo amor de Deus.
Levar um pé na bunda, viajar e achar que o “azar” é do outro porque você é rica e bem-sucedida e está em Paris tampouco é de grande valia, visto que qualquer término de relacionamento deve nos fazer refletir sobre as nossas ações, porque até onde sei é impossível mudar o outro, mas é possível mudar a si próprio – e sim, o problema pode estar muito mais em você do que no outro.
Se a solução de todos os problemas e a felicidade dependem somente do dinheiro, então ele é nosso deus.
Assim como os pastores da teologia da prosperidade, os profissionais que fingem não ser coaches cobram um dízimo: compre meu curso e todas as bênçãos recairão sobre sua vida. O curso não funcionou? Você não se esforçou e não o aplicou direito, da mesma forma que o fiel que permanece pobre é levado a crer, pela mesma teologia, que tem pouca fé.
Veja, que coisa, se você não consegue trocar seu carro popular por um carro que custe mais de duzentos mil reais a culpa é sua porque você não quis pensar “fora da caixa”, porque não teve fé suficiente. Se por ventura você não pode pagar um plano de saúde e seu filho precisa recorrer ao SUS, você é um irresponsável, porque segundo os adeptos da teologia da prosperidade, nós temos a vida que merecemos proporcionalmente ao esforço que fazemos.
No artigo que citei, a autora escreve o seguinte:
Quando perguntado sobre a permanência de fiéis na condição de pobreza, residindo ainda em cortiços, R.R Soares (1985) retruca ao afirmar que não basta pagar o dízimo, mas esforçar-se, entregar-se inteiramente ao trabalho, ser astuto, persistente, inteligente e competente, sabendo aproveitar as oportunidades.
Além da exigência do pagamento do dízimo, incide também a promoção de eventos voltados para a formação de empreendedores, de homens de negócio. Os fiéis são orientados a deixarem de atuar como empregados de empresas para tornarem-se patrões. Estas práticas são testemunhadas frequentemente na mídia para atrair novos seguidores.
Consegue perceber a semelhança entre os coaches e os pastores? Acabei de encontrar outra frase num post num desses perfis que prometem uma vida próspera com curso de marketing digital: “As pessoas não têm paciência pra dedicar 3 anos à construção do seu próprio negócio, mas têm paciência para trabalhar para outros durante 40 anos”, como na citação acima, os seguidores (ou fiéis), são incentivados a queimar a CLT porque não há nada melhor do que empreender – como se empreender fosse para todos.
Esse misto de teologia da prosperidade com Programação Neurolinguística (PNL) tem levado as pessoas à loucura, algumas largam os empregos estáveis e decentes para empreenderem do “zero”; outras, em vez de adquirirem habilidades técnicas reais dentro de suas profissões, gastam fortunas em masterminds para ouvirem abobrinha sobre mentalidade e mindset. Há também aquelas que já têm uma vida financeira muito confortável e são levadas a crer que não podem se acomodar, que é preciso querer mais. Qual é o limite? O céu? Eu diria que, na verdade, o inferno.
No pequeno e denso livro que já citei em outras Cartas, Sociedade do Cansaço, Han afirma que a os adoecimentos neuronais deste século são estados patológicos devidos a um exagero de positividade. A positividade a que o autor se refere pode ser compreendida como uma abertura irrestrita das pessoas a tudo a que são expostas, como se não tivessem mais um filtro para imunizá-las. Ele diz que essa positividade é imanente ao sistema, ou seja, está contida na natureza, e eu entendo que a teologia da prosperidade é esse corpo estranho carregado dessa positividade saturante e exaustiva que está no ar, não temos escolha, somos sufocados, em menor ou maior grau, a prosperar.
Somos convidados não a contemplar a vida, mas a agir o tempo todo em nome da prosperidade, o diabinho aparece e sussurra no seu ouvido que o livro que você lê é inútil porque não aprimora nenhuma técnica, que o curso sobre cinema que você está fazendo não acrescenta nada ao seu currículo, que caminhar pela rua sem destino é coisa de vadio, que é preciso estar sempre em movimento buscando a alta performance e, preferencialmente, esse movimento tem que corroborar para a prosperidade financeiramente.
Hoje, vivemos num mundo muito pobre de interrupções, pobres de entremeios e tempos intermediários. No aforismo “A principal carência do homem ativo”, escreve Nietzsche,”Aos ativos falta usualmente a atividade superior […] e nesse sentido eles são preguiçosos […] Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica”.2
Sim, os adeptos da teologia da prosperidade são pessoas preguiçosas porque não sabem contemplar e refletir, apenas produzem, tal qual um computador que trabalha por horas, mas que é incapaz de solucionar questões além daquelas para o qual foi programado – ou seja, é burro.
A teologia da prosperidade tira a importância da adversidade da nossa vida, fazendo com que nos comportemos como animais, buscando o prazer e fugindo de dor. Os nãos que levamos da vida, as próprias adversidades inerentes a ela são a matéria-prima para o nossa “prosperidade” espiritual, o que nos torna mais maduros e sábios é a capacidade de interromper esse fluxo contínuo de produtividade para contemplar, refletir e estudar sem um fim ou recompensa material.
Esses tempos uma consultora de moda do Instagram mostrou os produtos que usava no cabelo e lembro-me que os shampoos, condicionadores e toda a coleção custavam mais de mil reais. Isso pode representar muito pouco no orçamento dela e tudo bem, como copywriter entendo que os produtos tem um público, no entanto, o que me cansa é o discurso de: “você merece o melhor”, “não aceite pouco”. De fato é muito ruim ser avarento e nunca proporcionar a si coisas boas, mas eu acho danosa essa ideia de sempre querer tudo “no máximo” porque ela coloca as pessoas nesse movimento de uma sede insaciável por dinheiro, afinal, é ele que vai proporcionar “o melhor”.
Será que a nossa autoestima vai ficar tão abalada se tudo que pudermos comprar for um TRESemmé ou um Head&Shoulders?
Não estou aqui para condenar o consumo e o desfrute de bons momentos que o dinheiro pode proporcionar, mas sem dúvida condeno e quero distância de quem acha que o dinheiro é a solução para todas as nossas angústias e que acredita que “vencer na vida” é construir um belo patrimônio e “dar coisas boas para quem amamos”. Como li agorinha na introdução de um livro que acabei de receber, “a própria experiência amarga e dura nos mostra que médicos, advogados e engenheiros nós os temos: a escassez é de homens”3.
Ocupe-se, trabalhe, honre suas contas e sua família, desfrute, mas também pare, contemple e reflita, pois “onde estiver o teu tesouro, lá também estará o teu coração”4, e no dia em que ele parar de bater, dinheiro nenhum será capaz de salvar você da tragédia de não ter sido quem você nasceu para ser, até porque ser milionário não é virtude.
https://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/view/35992
Sociedade do Cansaço, p.53 (Byung-Chul Han).
A educação dos filhos - Monsenhor Álvao Montenegro.
Mateus 6:19-21
Olá, Bianca! Sou autora do artigo que mencionou, e venho manifestar que compartilho da mesma perspectiva que você. O artigo foi escrito em 2016, e de lá pra cá tivemos um salto significativo das propagações desta ideologia nas redes sociais. Os cursinhos que comercializam pacotes para concursos públicos a adotam, gerando um mar de frustração e baixa estima nos concurseiros que não conseguem aprovações imediatas. Logo, essa propagação está generalizada gerando adoecimento dia após dia. Muito obrigada pela exposição da sua carta e por citar as referências! Forte abraço!
Em um meio tão dinheirista como o que vivemos, ler seu texto, com as referências que você trouxe e seu raciocínio afiado, foi como encontrar um oásis.
Eu vi de perto o que essa teologia da prosperidade é capaz de fazer. Eu vi o declínio espiritual, moral e intelectual de pessoas com quem convivi e que acreditavam nisso. Também quase caí nesse conto, mas observar a influência dessa teologia em pessoas próximas e voltar a dar atenção às palavras do Pai me fez enxergar o abismo em que eu poderia ter entrado.
Seu texto nunca foi tão necessário como nos dias de hoje.