Uma carona com Godard.
A eternidade o transforma enfim naquilo que ele sempre foi.1
Estava eu de carona e, pouco antes de sair do carro, numa calçada tumultuada que impedia minha permanência no veículo por uns instantes a mais, o motorista afirmou o seguinte:
– Eu não fiz nada relevante, grandioso… não fiz história.
Incrédula e curiosa, estava prestes a perguntar de onde ele tirou essa ideia, mas tivemos de nos despedir porque logo receberíamos buzinadas em plena Lauro Linhares. O assunto morreu.
Morreu em palavras, mas tenho certeza de que o pensamento ressuscita e assombra o motorista – e também passou a me assombrar porque creio que ele está enxergando a própria vida com as lentes turvas. Como disse o Apóstolo, “A lâmpada do corpo é o olho. Se teu olho for transparente, ficarás todo cheio de luz. Mas se teu olho for ruim, ficarás todo em trevas2”.
Afinal, o que é fazer algo grandioso na vida?
Ontem assisti ao filme Viver a Vida do Jean-Luc Godard, e por alguma razão lembrei desse diálogo com o motorista. Nana, a personagem principal, sonha em ser uma atriz famosa, porém, toma algumas decisões que a levam à prostituição. O que realmente me marcou – e essa é uma percepção pessoal, visto que não sou especialista em cinema – é que o filme segue o ritmo da vida, não há um plot twist, um grande momento em que tudo pausa para Nana decidir: “A partir de hoje serei prostituta”, a vida vai acontecendo, exatamente como fora das telas.
Na última cena, porém, despertei e pensei: “Mas como ela permitiu que as coisas chegassem a esse ponto?”. Ao mesmo tempo em que parece absurdo, o final nada mais é do que a consequência de pequenas decisões cotidianas que passam despercebidas. O final “é o que é”.
E essa falta de percepção das decisões que são tomadas talvez tenha a ver com um trecho que considero como o melhor diálogo do filme em que Nana, tentando conquistar um cliente, senta à mesa e acaba dialogando com ele, que é filósofo3:
[…]
Filósofo: Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo, é quase… o preço.
Nana: Então falar é mortal?
Filósofo: Falar é quase uma ressurreição relativa à vida. Pensemos que, quando falamos, vivemos uma vida diferente da que quando não falamos, compreende? Então, para viver, falando, devemos passar pela morte da vida sem falar. Não sei se consegui me fazer entender, há uma certa ascese que diz que só falamos bem quando olhamos a vida com desapego. Estamos na vida cotidiana e depois nos elevamos para uma vida, digamos, “superior”, a vida com pensamento. Mas a vida com pensamento pressupõe que matemos a vida cotidiana, a vida demasiado elementar.
A vida cotidiana não é ruim, porém, precisamos dessa vida “superior” de que o filósofo fala. A minha experiência pessoal me leva a crer que se não elevarmos o pensamento, nos restringindo apenas ao que é elementar, somos levados pela correnteza da vida até o momento em que percebemos que “não damos pé”, e esse não dar pé gera o pânico que nos afoga ou, pior ainda, nos afogamos antes de ter a chance de tentar boiar ou nadar.
Conheço o motorista, não é jovem, está na terceira idade e ao contrário do que afirma fez coisas grandiosas, mas não consegue enxergá-las porque, até o momento, vê a vida de forma elementar e acredita que a relevância das ações estão ligadas às conquistas materiais e tangíveis: uma grande invenção que revolucionou o mercado, uma empresa com centenas de filiais, quantias obscenas de dinheiro para “aposentar os filhos e netos”. Não vê que fez o mais difícil: honrou votos, tomou decisões difíceis podendo optar pelas mais fáceis, foi caridoso com quem não tinha a menor obrigação de sê-lo; como ser humano, é claro, tem seus vícios, quem não os têm? Mas não se trata de alguém que traiu a própria história.
Tenho uma anotação do dai 17 de julho de 2018 da Aula 3 do Seminário de Filosofia do professor Olavo de Carvalho, em que ele afirma o seguinte:
[…] Se aquela figura ideal que você inventou se fechar em si mesma e não houver entrada de novos elementos, você passará a viver o seu ‘eu ideal’ numa fantasia subjetiva que só servirá para e você e que não vai virar realidade nunca[…] Se você escolheu uma certa imagem, certas qualidades a serem incorporadas, então é por esses lados que você quer ser olhado.
[…] Mas vamos supor que você esteja no meio de pessoas que não ligam nem um pouco para isso, não é que elas sejam contra as qualidades, elas não percebem essas qualidades. Elas têm algumas expectativas em relação a você e, se você tentar ser aquilo que quer ser, elas não entendem. Você é como um personagem que entrou na peça errada. Nesse caso, você terá de fazer uma extensão do seu enredo para que ele abarque aquela situação específica. Vai ter de fazer uma variação do seu enredo, de modo que a unidade final do resultado predomine sobre a variedade e a confusão das situações externas.
Ironicamente a Nana, que desejava ser atriz, não conseguiu adaptar o enredo da própria vida para, no mínimo, se aproximar dessa intenção, optando por abandonar a vida que tinha para, em tese, construir uma nova que se adaptasse ao seu objetivo. Abandonou o marido e o filho, abandonou o emprego na loja de discos e foi para as ruas se prostituir. Em vez de usar o trigo e o fermento para fazer pão, jogou-os fora porque não havia ovos (ou seja, a circunstância perfeita) para assar um bolo.
O motorista, por sua vez, fermentou a realidade, não foi possuído por ela, possuiu-a. Não fugiu para o mundo da fantasia e tampouco se conformou com as situações difíceis pelas quais passou, mas enfrentou esse estado de tensão da maneira que era possível com o que tinhas em mãos.
Entretanto, há pessoas como a Nana na vida real, realizam pouco ou nada porque não olham para a realidade com o desapego elementar sugerido pelo filósofo do filme do Godard, enxergam a rotina como uma prisão e, em vez de absorvê-la, a ignoram e paralisam: não cumprem as tarefas mais corriqueiras (ou as cumprem com o freio de mão puxado) e tampouco realizam o que desejam.
Para mim fica claro que se não há desprendimento das frustrações de ideais não cumpridos, é difícil, senão impossível, cumprir aquilo que desejamos, como aconteceu com a Nana. Ficamos no limbo, no pior dos dois mundos.
Um exemplo disso na literatura é O Feijão e o Sonho do autor Orígenes Lessa, em que o personagem, Campos Lara, vive essa tensão entre realizar o sonho de ser escritor ao mesmo tempo em que necessita pôr o feijão na mesa4.
Não sei a origem dessa ideia de que os deveres atrapalham nossos objetivos, na verdade, se esses objetivos são vocações reais, e não um desejo passageiro ou ideal que alguém colocou em nossa cabeça, as obrigações serão um dos ingredientes que darão corpo e fomentarão o que nos propomos a fazer. Levei mais anos do que gostaria para entender isso e, quando incorporei esse entendimento, porque entre entender e praticar há um abismo, a angústia foi embora porque parei de lamentar e passei a fazer o elementar com desprendimento, dando espaço para pensar com mais clareza e menos tensão.
A nossa natural indolência sentimental se converte num forte hábito de diligência quando não adiamos as tarefas mais antipáticas, escreveu Cifuentes5, e, ouso complementar que essa diligência sedimenta o caminho para nossas realizações mais íntimas e mais nobres se tivermos essa leveza desprendida para enxergar o que os olhos não podem ver, mas o coração pode sentir.
Talvez eu esteja errada, mas até o momento acredito que carregar a cruz das circunstâncias ao mesmo tempo que tentamos construir aquilo que almejamos é o que forja o nosso caráter, é isso que nos livra da “vida inteira que podia ter sido e que não foi”6, e torna a vida o que ela realmente é, eterna.
Isso não é grandioso o bastante?
Anotei essa frase há muito tempo numa das aulas do Seminário de Filosofia do professor Olavo de Carvalho. A frase, pelo que entendi, é de autoria de Stéphane Mallarmé.
Mt 6,22-23
Descobri que o personagem é filósofo dentro fora das telas, trata-se de Brice Parain.
Sugiro que você clique aqui e ouça esse trecho do já citado Olavo sobre o livro.
A Maturidade - Rafael Llano Cifuentes.
Manuel Bandeira.