Esta história aconteceu com “uma amiga de uma amiga minha”.
Ela estava bebendo seu espumante tranquila numa noite quente de verão, acompanhada de algumas pessoas pelas quais ela tinha, até então, enorme admiração; depois disso, porém, a coisa perdeu um pouco o brilho.
– Vocês terão uma família e vão querer dar o melhor pra ela, por que não focam em fazer concurso público para (nome do cargo).
O espumante brut desceu abruptamente, ela sentiu aquele calor subindo a espinha e…respirou fundo, usou uma de suas poucas habilidades, a de puxar assuntos aleatórios, para desconversar e evitar desgastes, contudo, enquanto falava, pensava:
– Seremos uma família? O fato de não termos filhos não nos torna uma família completa? Dar o melhor pra ela? O que seria “o melhor” caso os filhos sejam gerados? Um Apple Watch? A escola mais cara da cidade?
Tudo é dinheiro.
Esta é a cabeça da maioria dos brasileiros, não importa a classe social – pobre, classe média ou rico. Todo o valor de uma pessoa é medido através do quanto ela tem na conta no dia 05 de cada mês.
Esta amiga de uma amiga e seu respectivo marido nunca reclamaram de dinheiro, nunca pediram um real a ninguém, não têm dívidas, nunca afirmaram que sonham em ocupar determinado cargo público.
Agora corta a cena.
Eu sempre digo que gosto muito de trabalhar, para mim, o trabalho é um meio para alcançar um fim não só financeiro, mas principalmente espiritual. Ninguém aqui é hipócrita: o dinheiro é um meio importante e todos gostamos de gastá-lo em experiências e coisinhas legais.
Mas é isto: o dinheiro é um meio.
Um meio para: ter um teto; morar num lugar digno com água encanada, rede de esgoto, luz elétrica; ter comida na mesa; ter o mínimo de saúde e higiene.
Quando você tem esses meios satisfeitos, sua vida sai daquele estado de luta pela sobrevivência e, supostamente, com todos os meios básicos satisfeitos, deveríamos pensar em coisas mais metafísicas e menos terrenas.
Deveríamos, em tese, nos preocupar em nos livrar de vícios e adquirir virtudes. Como? Através, principalmente, do trabalho. Nem todo mundo tem vocação para ser um monge ou um frade capuchinho, mas dentro da nossa própria circunstância podemos ser pessoas melhores, não podemos?
E ser alguém melhor, mais genoroso, mais leal, mais simpático, mais atencioso, mais sábio, mais acolhedor, independe da profissão ou cargo que você ocupa.
Quando o assunto é virtude, qualquer ofício serve.
Esses dias, nos stories, falei sobre o dia em que cheguei no meu prédio perto do meio-dia para pegar minha encomenda e a zeladora fez cara feia afirmando que eu não poderia pegá-la naquele momento porque era o horário de almoço dela – ela não estava almoçando e o saco da encomenda estava do lado dela.
Qual é o problema dessa moça? O fato de ela ocupar um ofício de baixo prestígio social ou a mesquinharia e a falta de generosidade com o próximo?
Quantas pessoas, em cargos e profissões de alto prestígio, não tem comportamentos semelhantes – ou piores – do que esse? Várias, e eu aposto que você deve ter lembrado de alguém.
Mas essa história de virtude soa tão pequena e sem ambição aos nossos olhos mundanos, né?
– Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. 1
No célebre conto do Machado de Assis o pai ensina o filho a parecer alguém de prestígio social e, para isso, o aconselha a utilizar uma linguagem rebuscada. Nos dias de hoje, porém, ninguém liga muito para ditos históricos e versos célebres, portanto, se você não quer soar pequeno e sem ambição aos olhos mundanos, basta afirmar que: está estudando para passar no concurso público para juiz, promotor, delegado, auditor ou outro cargo de renome; ou que pretende cursar medicina; ou que pretende abrir filiais do seu negócio.
Pense em qualquer coisa que dê status, prestígio financeiro ou que mostre que você “pensa grande” e, consequentemente, você será visto com bons olhos. Nem precisa passar no concurso, só a meta – assim como os brocardos jurídicos do conto machadiano – já é o bastante para, durante a sobremesa, você parecer alguém elevado.
Não estou exaltando a mediocridade, eu mesma tenho objetivos profissionais e trabalho todos os dias em direção a eles, porém, o alcance deles não é uma condição determinante para minha felicidade; a quantidade de dinheiro que recebo a cada emissão de nota fiscal não determina o valor do meu espírito.
As consequências de achar que o seu valor está no quanto você tem na conta podem ser desastrosas, pense: e se você ganha bem mas, de repente, precisa gastar grande parte do dinheiro num tratamento de saúde? E se o país passar por uma crise financeira e seu dinheiro perder o valor? E seus clientes te demitirem? E se a sua empresa quebrar? Acabou o seu valor?
Infelizmente, muitas pessoas responderiam “sim” a essa pergunta.
E ouso dizer que a premissa do “ter para ser” é tão forte na cultura do brasileiro que, muitas vezes, a opinião de quem ocupa um belo cargo e faz mais dinheiro tem mais valor do que a de um verdadeiro especialista no assunto – mas que é um pobre e sem credenciais.
Volta e meia escuto que hoje em dia, em termos culturais, o Brasil está decadente, mas você já parou pra pensar que um dos motivos dessa decadência é justamente o fato de as pessoas buscarem fazer as coisas somente pelo dinheiro e pelo prestígio?
Não há incentivo para a música, literatura, cinema, pintura porque todos são levados a crer que a única coisa importante é fazer dinheiro, comprar um SUV, ter um imóvel e viajar2.
Esta newsletter é um exemplo claro de algo que, diante do ideal materialista, não serve para nada: ela não me dá retorno financeiro e nem status – não é à toa que, ironicamente, é chamada de “minha carta semanal sobre tudo – menos o que importa”.
Mas ela dá sentido aos meus dias, a decisão de criá-la não partiu do meu bolso, mas do meu peito e, por acaso, você, querido leitor, teve a generosidade de assiná-la3. Curiosamente, você também não ganha nada em termos materiais quando a recebe em seu e-mail, mas ainda assim você a lê, não é?
Isso é um sinal de que dentro do seu peito existe algo que nem o chip do cartão de crédito por aproximação consegue alcançar.
O que me une a você, leitor, não é uma utilidade material, não é uma troca de um serviço/bem pelo seu dinheiro. Nada disso é condenável, todos precisamos de bens e serviços e trocamos nosso suado dinheiro por ele; o que quero dizer, contudo, é que eu e você, através destas Cartas, estamos unidos por algo metafísico e genuíno, algo que o dinheiro não consegue suprir.
No livro que comecei a ler hoje, Claro Escuro, Gustavo Corção escreve o seguinte:
Mas a função civilizadora daqueles que praticam o alpinismo das artes ou da filosofia, embora não pareça, é ainda maior do que a dos manipuladores de utilidades, porque opera uma elevação naquilo que o homem tem de mais humano. Além disso, cumpre notar que a elevação, embora torne difícil o contato imediato, torna mais fácil o congraçamento4. É por mastros, faróis e cumes que os homens se orientam; é em torno de sinais elevados que se unem.
O livro não tem a ver com o tema de hoje, mas esse trecho, especificamente, veio a calhar e deixa claro que, embora estas singelas Cartas sejam um rascunho de algo “filósofico” ou “artístico”, ela nos une e nos torna mais humanos.
Eu espero que o seu trabalho frutifique em termos materiais, porém, rezo para que essas delícias terrenas não se tornem a finalidade da sua vida e nem impeçam que você enxergue esses sinais mais elevados que nos unem.
Retifico, portanto, o título de hoje: você não é o quanto ganha.
Teoria do Medalhão - Machado de Assis.
Não custa frisar que não há nada de errado em ter e querer essas coisas, e sim em fazer disso a finalidade última da vida.
Muito obrigada a você, leitor, que dedica uma fração do seu tempo para ler o que escrevo. ❣️
Buscar atrair as boas graças, a amizade ou simpatia; harmonizar; confraternizar.
Excelente o texto! 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽
P.S.: sou de Brasília. Aqui tudo gira em torno de concurso público. Não é fácil estar do outro lado.