A relevância do irrelevante.
Hoje prometo pegar leve, juro que você não sentirá vontade de queimar esta Carta nas chamas do próximo churrasco.
Acredito que há dois extremos que devemos evitar nesta vida: o de buscar prazer toda hora e o desassossego de querer ser produtivo e fazer coisas úteis a cada instante.
Entre esses dois extremos há um meio-termo importante, que é o que costumamos chamar de fútil e irrelevante.
Existe todo um julgamento social quanto ao ócio e à irrelevância de certas coisas, é o tal do “Pra quê?”. Por exemplo:
– Descansar? Pra quê? Você precisa enriquecer, isso sim.
Porém, da mesma forma que nos tornamos semelhantes aos animais quando fugimos da dor e buscamos o prazer, também nos assemelhamos a eles quando vivemos para caçar – leia-se trabalhar e estudar.
Acredito que você, leitor, de segunda à sexta-feira, passa a maior parte do tempo trabalhando e/ou estudando – não tem jeito, a vida é assim mesmo, os boletos não dão trégua.
Porém, com a onda coach e com o papo de produtividade a coisa desandou e, hoje, ser workaholic virou sinônimo de status, muitos adoram anunciar que trabalham muito – e ainda colocam aquela foto no ambiente de trabalho num sábado de manhã com a legenda “depois dirão que foi sorte”.
Não há problema em trabalhar nos fins de semana, inclusive, esta é a realidade de muitos trabalhadores do campo, do comércio, dos hospitais, da polícia, do corpo de bombeiros, etc. Não há nada de errado em, por vontade própria, lotar sua agenda e trabalhar nos fins de semana para fazer mais dinheiro, adquirir mais experiência e ter seu nome circulando no mercado. E também não é errado estudar coisas úteis e práticas – aliás, poucos são os que seguem a vida profissional estudando.
A questão é: por mais ocupado que você seja, é necessário dar espaço para coisas “irrelevantes”, aquelas coisas que, aparentemente, não são funcionais/úteis.
Pintar um quadro, desenhar, ler um livro de literatura, fazer artesanato, costurar, cuidar do corpo, ir ao salão de beleza, ir à barbearia gourmet que oferece cerveja “de graça”, assistir a um filme, decorar a casa, viajar, fazer um curso por puro prazer e que nada tenha a ver com a sua profissão, ir à praia, surfar, jogar vôlei, jogar beach tennis.
Quase todas essas atividades – pois algumas podem se tornar uma profissão –, se analisadas sob uma ótica estritamente material, não servem para absolutamente nada.
Nenhuma mulher precisa se maquiar ou usar um par de brincos; nenhum homem precisa ir à barbearia gourmet. Ninguém precisa de uma casa aconchegante e bem decorada. É possível viver sem essas coisas, não é?
Mas essas coisas são boas, elas adornam a alma1.
Certa vez, e confesso que não lembro quem fez esta afirmação, li o seguinte: na Bíblia, no livro Gênesis, lemos que “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom”2.
Não era funcional.
Não era útil.
Não era produtivo.
Não servia para alguma coisa específica.
Era bom.
Quando você chega em casa depois de um dia de trabalho, abre a porta e vê aquela combinação de quadrinho na parede, tapete e abajur com luz amarela3, seu espírito é inundado por uma sensação boa, não é?
Quando você chega do surf, do vôlei, da academia ou do beach tennis e toma aquele banho gostoso, parece que a sua energia é recarregada e você se sente bem para sentar e trabalhar.
Quando você acorda com a cara toda amassada, passa aquele reboquinho básico – rímel, base, blush e batom – e coloca uma roupa decente, o seu espírito se estabiliza, muda, fica ordenado e você se sente bem.
Nada disso tem um benefício ou contrapartida direta, no entanto, nos preenchem de uma forma que não sabemos explicar ou nomear – falei um pouco disso na Carta Você é o quanto ganha.
Certa vez me contaram o seguinte: “Fulano diz que vendeu o carro porque não precisa dele, acha que é muito gasto e prefere sair de Uber ou alugar um carro quando viaja”. Bom, o Fulano que faça como achar melhor, no entanto, sei que esse Fulano tem uma situação financeira muito confortável.
Sob o aspecto material a decisão do Fulano é racional, concordo. No entanto, e aqui peço licença para fazer um julgamento pessoal com a minha visão acerca do papel do homem, não acho que seja bom para um homem feito, com plenas condições financeiras4, abrir mão desse bem em nome da economia e praticidade dos carros de aplicativo e aluguéis.
Eu acho importante o homem ter o seu próprio veículo, acho que é bom que o homem lide com as obrigações que um carro exige – seguro, tributos, manutenção –, acho que é bom que ele busque a cheirosa na porta de casa, acho que é bom que leve o filho pequeno no colégio e depois o ensine a trocar pneus.
Não é mais prático, mais barato, mais econômico. Mas, na minha visão conservadora, é bom para apurar o que considero papel “de homem”: condução, liderança, proteção, senso de responsabilidade5.
E é nessas situações que percebemos que o irrelevante é, na verdade, relevante.
Só não é tangível.
Não sou gênia e tampouco figuro dentre as mentes mais brilhantes que transitam por este planeta, sou atenta, apenas; e minha atenção é capaz de, justamente, captar essas intangibilidades.
Para os desatentos, uma mulher que recusa a sair com um homem financeiramente bem-sucedido que não tem carro é apenas interesseira. De fato, elas existem, mas eu aposto que muitas, ainda que não saibam explicar o porquê, entendem que não é bom sair com alguém que valoriza mais a economia de dinheiro do que o conforto e a gentileza de uma companhia.
Para os desatentos, colocar uma roupa decente para receber a visita em vez de ficar de moletom e pantufa, pode parecer bobagem, afinal, “tô na minha casa, faço o que quiser”, porém, é bom porque demonstra que aquela pessoa é esperada, que você a enxerga como um evento especial e não como um mero acontecimento no seu dia.
Para os desatentos, preocupar-se com o corpo através de atividade física, boa alimentação e até intervenções cirúrgicas é futilidade, porém, é bom para a autoestima e até para interação/inclusão dessa pessoa na sociedade. Quem nunca ouviu histórias de pessoas que ou não saiam de casa por vergonha, ou não conseguiam sair com ninguém por causa de uma baixa autoestima proveniente de um desgosto físico?
Acho que não preciso me estender nos exemplos, você captou o que quero dizer: o “irrelevante” é a poesia da vida, é o ar que enche nossos pulmões depois de nos afundarmos num oceano de obrigações, é o “cacho” de bougainville que recai sobre um muro branco e o torna cheio de charme.
Sei que minhas Cartas são, muitas vezes, muito cruas e pouco doces – mas sempre temperadas, diga-se de passagem –, mas hoje fiz diferente, escrevi-a como se um chocolate fosse: pouco nutritiva, e totalmente irrelevante para o nosso corpo, mas essencial ao espírito.
Sem dúvidas o chocolate é muito mais gostoso mas, se consegui transmitir 1% desse irrelevante prazer para você, já fico feliz.
Que o irrelevante se torne relevante no seu cotidiano.
Uma boa semana!
Virtutem Forma Decorat,”A beleza adorna a alma”, esta frase é encontrada no verso da pintura Ginevra de'Benci de Leonardo da Vinci.
Gênesis 1:31
Deixa eu te falar algo que aprendi com uma boa arquiteta e com uma entusiasta do design: elimine a luz branca da sua casa, deixe-a para as salas de cirurgia e para o açougue.
É óbvio que se o varão não tem condições financeiras de ter um carro isso não o desabona, preciso fazer esta nota para que você pense que sou interesseira ou que estou afirmando que homem sem carro não presta.
Vamos lá, ando me explicando demais, mas não custa lembrar que mulheres também podem ter essas características, porém, sabemos que elas estão mais ligadas ao masculino.