Precisamos de poucas palavras para exprimir o essencial, precisamos de todas as palavras para torná-lo real.
– Paul Éluard
Há alguns meses assisti ao filme Alphaville do Godard, entrei numa sequência de filmes desse cineasta porque, apesar de sua fama, nunca havia visto nada dele. Inclusive, o filme Viver a vida inspirou esta outra Carta:
Talvez você não goste de Godard, mas fique por aqui, ele não será o tema central; minha inspiração veio da
em seu texto Evite palavras que seus avós não usavam, e este trecho é o responsável pela Carta Branca de hoje:Nossos avós sobreviveram muito bem às dificuldades da adolescência e começo da vida adulta sem falar em “empatia”, “resiliência” e “responsabilidade emocional”.
Não por isso eram desprovidos de compaixão pelo sofrimento alheio, desistiam dos seus projetos diante da menor dificuldade ou não estavam nem aí para o fato de que suas ações teriam reflexos nas emoções dos outros.
Esse trecho me fez lembrar de um vídeo de uma antiga reportagem (se é que assim pode ser chamada) da Globo, sobre como pessoas ditas comuns, “careca, gordinha, míope, cara de bolacha e feia”, na palavra dos próprios jornalistas, estavam ganhando dinheiro na televisão, veja:
Eu, particularmente, acho abominável uma “reportagem” como essa, sabemos que existe um padrão de beleza que “engaja” e vende mais – e a Gisele Bündchen está aí para ratificar minhas palavras –, contudo, isso não nos dá o direito de ridicularizar a aparência alheia.
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A questão aqui é como, sem que você perceba, sua liberdade é limitada quando sua opinião é pautada exclusivamente pela mídia: hoje eles falam em gordofobia e “romper” com os padrões de beleza; ontem, excluíam e ironizavam quem agora afirmam defender.
O jornalista, inclusive, já induz uma das entrevistadas ao perguntar se a gordinha “tem condições de fazer um comercial de tv”, e a moça, sem rodeios, responde: “Tá louco, essa gorda aí fazendo comercial de TV”. Hoje, a reportagem, o jornalista e a entrevistada seriam “cancelados” não pelos motivos certos, e sim porque o “quarto poder” decidiu.
Quais são os motivos certos para não fazermos uma reportagem falando da “cara de bolacha” ou da falta de beleza alheia? O respeito, a compaixão, a caridade, a justiça, atitudes atemporais que independem de audiência, views ou de likes. Todos esses motivos são ignorados porque o objetivo não é fazer o certo, mas o que é lucrativo, e o que dá lucro para a mídia é a audiência.
Todas as palavras que a
menciona são ocas porque o fim delas é esse mesmo, nos dessensibilizar para o real significado das coisas, se pudesse designá-las, diria que são “palavras mercenárias”, empregadas não com o propósito de comunicar de forma genuína, mas sim para obter algum tipo de vantagem pessoal, seja persuadir, enganar ou manipular.Assim como no romance 1984, do George Orwell, em que o Grande Irmão cria um Ministério da Verdade para correção das notícias passadas para que elas se alinhem às mentiras recentes, quando não temos convicções firmes perdemos o sentido real das palavras e nos deixamos influenciar por qualquer coisa; nossa opinião vai se alinhando a do jornalista, do influencer, do coach, dos psiquiatras e psicólogos que chamam os próprios seguidores de babacas, e, numa espécie de neurose, fingimos que nunca pensamos diferente daquilo que hoje é dito como certo. ⠀
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E onde que o Alphaville entra nesta conversa?
No filme, Alphaville é uma cidade que vive numa noite eterna e é comandada por um computador chamado Alpha 60 criado pelo Professor Von Braun; palavras como consciência e amor foram eliminadas do dicionário, poetas são renegados, mulheres são classificadas como números e quem demonstra emoções é sumariamente fuzilado à beira de uma piscina.
Não é semelhante ao que vivemos? Não temos um Alpha 60, mas temos o Iphone, o Samsung, etc. que nos dá acesso às redes sociais, uma espécie de cidade utópica em que vigiamos e somos vigiados e, muitas vezes, punimos ou somos punidos por palavras e opiniões, às vezes pelos próprios “cidadãos”, às vezes pela plataforma e noutras pelos supostos guardiões da Constituição.
Somos influenciados a não utilizar certas palavras porque, supostamente, são ofensivas:
O bandido que é preso em flagrante após assassinar uma pessoa vira “homem” ou “suspeito”. Se tiver menos de 18 anos, é “estudante”.
O Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte nos aconselha a evitarmos termos como “esclarecer” e “denegrir” porque são racistas1.
O criado-mudo, aquele móvel que fica ao lado da sua cama, precisa ser chamado de móvel de cabeceira porque dizem que se refere às “às pessoas negras escravizadas responsáveis pelos serviços domésticos, que tinham a atribuição de segurar objetos pertencentes a suas senhoras e seus senhores, servindo de apoio permanente”.
Mendigos e andarilhos são “pessoas em situação de rua”.
Viciados são "adictos”.
Deficiente físico é “cadeirante”.
Na apresentação de um trabalho da faculdade fui interrompida pela professora porque falei “diabético”, quando eu deveria falar “pessoas com diabetes” porque ao chamar alguém de diabético estou, em tese, reduzindo a pessoa a uma doença.
No já citado 1984, o autor escreveu que “a liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Quando se concorda nisto o resto vem por si”. Nos exemplos que citei acima as palavras, por si só, não são ofensivas, mas somadas a outras num contexto e numa determinada entonação – e olhe lá, como “criado-mudo” ou “esclarecer” podem ofender alguém? – podem ter esse “poder”.
Quando esvaziamos o sentido de uma palavra ou a “ressignificamos”, saímos do mundo real e partimos para o abstrato, deixando de sentir o peso que elas têm e, inclusive, perdemos a capacidade de discerniemnto para medi-las e usá-las com responsabilidade e respeito no contexto adequado, e essa prerrogativa deve ser nossa, não da mídia ou de um órgão burocrático qualquer.
Se afirmo que alguém é um mendigo, logo você imagina um sujeito maltrapilho, sem banho, pedindo esmolas, certo? Quando falo numa pessoa em “situação de rua”, que imagem vem à cabeça? Nada. A palavra mendigo pesa, eu sei, mas ela precisa pesar, você precisa lidar com os sentimentos que ela gera, sejam eles bons ou maus – piedade, repulsa, nojo, tristeza. Ao sentir nojo e repulsa, por exemplo, pode ser que em seguida você repreenda seu pensamento e sinta vergonha desses sentimentos, “Meu Deus, que otário que eu sou, coitado do mendigo”; se você sente piedade, pode pensar “Preciso ajudar mais mendigos, ter um trocado no bolso, ir ao mercado e comprar uma marmitinha, doar um cobertor”. Para o bem ou para o mal, você sente alguma coisa.
Já “situação de rua” é uma expressão que nos deixa apáticos da mesma forma que os personagens da distopias à la 1984. O próprio Deus, no que se refere à fé, vomita os apáticos, os “mornos”:
Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente. Melhor seria que você fosse frio ou quente!
Assim, porque você é morno, não é frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca.2
Não há nada pior do que a indiferença. De quem faz o mal é possível extrair o arrependimento, a redenção, a compensação, o martírio, a purga. E da apatia? Dela nada se extrai, é oca, morta, cinzenta.
Levo horas para escrever apenas uma newsletter porque cada frase precisa, na medida do possível, expressar fidedignamente as minhas experiências, o meu pensamento e meus sentimentos. Quero que cada Carta Branca seja como um coração pulsante que bombeia sangue puro e limpo a você que me lê, e isso só é possível através de palavras com “artérias e veias”, palavras que expressem, concretizem e elucidem o que se esconde no silêncio, o que se parece fantasia e o que permanece obscuro.
Essas palavras não são um amontoado de letras, e sim “Verbo que se faz carne”, materializando aquilo que já existe, aquilo que é humano e, portanto, real.
Não deixe que o Alpha 60 tire o sangue das suas palavras, dê a elas o significado real, como escreveu a Renata, chame filhos da puta de filhos da puta.
Apocalipse 3:15-16
News sensacional!
Todos perdemos quando alguém para um segundo antes de dizer o que pretende, pra não ser tachado de racista não por seus atos, postura ou opiniões, mas pelo uso de uma palavra que agora está na lista das palavras racistas.
Muito bom, Bianca! Agora vou precisar conhecer o trabalho do Godard