Tenho a impressão de que algumas palavras são suprimidas do nosso vocabulário a fim de evitar desconforto, um tema que já abordei no ano passado:
Quando não desaparecem, como abordo na Carta Branca acima, são ressignificadas e, portanto, o real sentido é esvaziado.
Logo após o carnaval inicia-se a Quaresma, período em que católicos são convidados a frear apetites e a levar uma vida mais austera como uma maneira de remissão dos próprios pecados, levando a uma reflexão acerca dos sacrifícios feitos por Cristo ao abraçar a humanidade e se submeter ao sacrifício máximo, a cruz, que é relembrado na Páscoa.
Na verdade, a ideia é que um católico siga atento ao versículo “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca1” durante o ano todo, mas na Quaresma sugere-se que as penitências sejam mais severas.
Uma pausa: se você não é católico, esta Carta também lhe será útil porque você é humano e está sujeito aos mesmos pecados – ou defeitos, chame como preferir – que um católico.
E eis o problema, quando fala-se em pecados e penitências as pessoas costumam revirar os olhos, inclusive, a ideia desta Carta partiu de um post que apareceu com certa frequência em meus stories:
“Troque sua quaresma sem doce, refrigerante ou pão por uma quaresma sem fofoca, maldade ou egoísmo! Para Deus e para o mundo não faz diferença ficar sem tomar Coca-Cola ou cerveja por 40 dias se você continuar a ser reflexo do inferno na vida dos outros”.
Antes de entrar no âmago dessa questão me pergunto se quem compartilha essas coisas está apenas aconselhado os católicos a não fofocarem, a não serem maldosos e egoístas ou se também está olhando para as próprias mazelas – espero que seja a segunda hipótese.
Voltando à reflexão: todos concordamos que fofoca, maldade ou egoísmo são, de fato, coisas negativas e que é muito mais virtuoso não fofocar do que cortar a cervejinha gelada. Mas quem disse que uma coisa não está ligada à outra? E por que uma coisa precisa excluir a outra?
Aqui entra minha visão de alguém que, com muita dificuldade, tenta viver o catolicismo e, ao mesmo tempo, é estudante de Nutrição, logo, o que, como e por que as pessoas se alimentam muito me interessa.
E se o ato de privar-se da cerveja, ou de qualquer outra comida ou bebida que amamos, ajudar a frear nossa língua?
Gula: por onde anda essa sumida?
Ainda não tenho uma vasta experiência na nutrição, como estudante não posso atender pacientes, salvo no estágio, contudo, as pessoas sabem que estou na faculdade e de vez em quando tiram dúvidas, desabafam ou simplesmente relatam alguma questão relacionada à comida ou ao ato de comer.
Já ouvi algumas vezes o seguinte relato:
“Eu não consigo emagrecer porque tenho compulsão por doces.”
“Tive compulsão, comi uma pizza inteira no fim de semana.”
Não estou aqui para fazer um julgamento, mas um esclarecimento: compulsão alimentar é um transtorno alimentar classificado no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que fornece critérios para identificar esses transtornos.
Apesar de não ser papel de um nutricionista diagnosticar doenças, é importante que saibamos o mínimo para ajudar pacientes, e esses dois relatos que ouvi normalmente não se enquadram nos critérios diagnósticos da compulsão, que envolvem:
Episódios, em média, pelo menos 1 vez/semana por 3 meses;
Falta de controle em relação à alimentação;
Além disso, pelo menos um desses três requisitos devem estar presentse:
Comer muito mais rápido do que o normal;
Comer até se sentir desconfortavelmente cheio;
Comer grandes quantidades de alimento quando não se sentindo fisicamente com fome;
Comer sozinho por vergonha;
Sentir-se nauseado, deprimido ou culpado depois de comer excessivamente;
O ponto central da compulsão não é o tipo de comida, mas sim a sensação de perda de controle e o ato de comer mesmo sem fome, muitas vezes de forma rápida e escondida.
Compulsão alimentar exige tratamento, acompanhamento psicológico e, em alguns casos, remédios psiquiátricos, pois enquadra-se como um transtorno mental; quando lemos relatos sobre esses casos, percebemos que há questões comportamentais, emocionais e até hábitos familiares envolvidos. É algo sério e gera muito sofrimento.
Tá, mas e a gula?
Os relatos que ouvi estão muito mais associados à gula do que à compulsão, porém, vamos combinar: é muito mais fácil enquadrarmos nossos vícios numa compulsão do que assumir que fomos gulosos.
Que atire a primeira pedra quem não comeu ou bebeu mais do que deveria.
Quem nunca procurou refúgio e consolo na comida ou na bebida?
Que mulher já não devorou uma panelinha de brigadeiro ou uma barra de chocolate no auge da TPM?
Quem nunca, com a barriga explodindo, repetiu a sobremesa?
Episódios pontuais de exagero não nos torna necessariamente compulsivos, mas pura e simplesmente gulosos – mas ressalto que a gula também deve ser tratada, como veremos a seguir.
Não é pecado comer, isso é óbvio, todos precisamos nos alimentar, nos nutrir e podemos, é claro, degustar preparações elaboradas e saborosas.
O erro está na nossa atitude espiritual e comportamental diante da comida e da bebida, elas passam a ser um fim em si mesmo e não um meio; viram sinônimo de felicidade. Por exemplo, certa vez, numa viagem, fiquei num hotel e, conversando com os proprietários, a conversa tomou um rumo em que tudo que falavam eram acerca das experiências gastrônomicas que tiveram na cidade x ou y:
“Você tem que ir ao restaurante X comer a melhor massa da sua vida.”
“Visitamos a fábrica do whisky Z e degustamos uma garrafa de 30 anos.”
Gosto de dicas de bons lugares para comer, no entanto, havia um endeusamento, um maravilhamento diante da comida que considerei exagerada, gulosa.
Desculpe novamente a interrupção, mas falo do tema numa antiga Carta Branca:
Ao contrário do que muitos pensam, a gula não se manifesta só no excesso. Em alguns ela se manifesta, de fato, na quantidade. Mas outros são tentados pelo sabor – não suportam que o paladar receba algo desagradável e endeusam as delícias culinárias. Ou seja, num caso a gula se manifesta através do estômago cheio; noutro, porém, nas sensações percebidas na boca.
Nos dois casos, para os que creem, pensamos na criatura e não no Criador. Nos dois casos percebemos os alimentos não como um meio, mas como um fim em si mesmo.
A gula, para mim, está sumida principalmente porque é associada a um dos pecados capitais, e a sociedade moderna, em geral, acha o catolicismo algo brega, retrógrado e tirânico. Além disso, há esse exagero diagnóstico em que comportamentos que são comuns (mas que também merecem atenção, sem dúvida) a todo ser humano são encaixados em algum transtorno – o que, inclusive, prejudica e estigmatiza quem realmente tem transtorno.
No livro Nação Dopamina, a autora cita um trecho do livro Bad Religion em que o autor, Ross Douthat, afirma que a fé do nosso tempo é:
[…]ao mesmo tempo, cosmopolita e reconfortante, prometendo todos os prazeres do exotismo…sem nenhum sofrimento…um panteísmo místico, no qual Deus é uma experiência e não uma pessoa. […] Existem frequentes chamados à ‘compaixão’ e à ‘generosidade’, mas pouca orientação para pessoas que enfrentam dilemas reais. E o que existe de orientação equivale a ‘se te fizer bem, faça’.
A gula é um desses dilemas reais e silenciosos que pode passar despercebida para a maioria de nós já que, infelizmente, a associamos apenas às pessoas acima do peso enquanto aplaudimos a blogueira magrinha que posta diariamente suas experiências gastrônomicas sempre deliciosas em Paris e Nova York.
Ninguém vê problema em sempre dar ao corpo aquilo que ele pede, como citado acima, a nossa premissa é a de “se te fizer bem, faça” ou, “se o corpo está pedindo é porque precisa”. Será?
Privar-se das delícias gastrônomicas importa
O que acontece quando você sente fome?
Há alguns anos, assistindo a uma live de um psiquiatra, minha ficha caiu para algo óbvio e que até então não havia percebido: a fome, assim como outras necessidades fisiológicas, impactam em nosso emocional. Então, quando a fome chega pode ser que você sinta irritação, tristeza ou desânimo, e se não tiver consciência de que a causa desses “sintomas” é meramente fisiológica, age de forma primitiva, selvagem.
Suponha que você acordou tarde e saiu para o trabalho de barriga vazia. Ao chegar, seu colega começa a metralhá-lo com centenas de informações e demandas importantes, porém, devido à privação de comida você se irrita, responde com raiva, culpa seu colega pelos atrasos e desabafa questões que até então achava prudente tolerar e guardar para si. Um bom café da manhã poderia evitar essa situação, sem dúvida, mas conhecer as próprias necessidades fisiológicas e os sentimentos que elas geram também o pouparia da raiva – e é por isso que é sensato, de vez em quando, jejuar ou abster-se de determinada comida.
O jejum não foi “criado” pela Igreja Católica, é uma prática antiga, adotada por ela e também por outras religiões. Será que todas elas querem sacanear as pessoas ao orientá-las a se privarem de comida? Muito pelo contrário, todas compreendem que jejuar nos liberta do desejo desordenado por comida, nos torna mais capazes de frear impulsos e fortalece nosso espírito diante de adversidades.
Você não precisa ficar três dias sem comer, mas privações brandas e propositais irão forçá-lo a refletir sobre seus hábitos e outros aspectos da sua vida. Acho que foi o escritor José Saramago que escreveu que “é preciso sair da ilha para ver a ilha, não nos vemos se não saímos de nós”. Jejuar ou abster-se de cerveja, refrigerante, chocolate, café ou qualquer outra coisa de que goste ou tenha o hábito de ingerir é como sair da ilha.
Embora o objetivo não seja o mesmo, perceba que algumas pessoas, quando seguem uma dieta, além de relatarem melhora na autoestima, conseguem melhorar em outros aspectos da vida. Não é uma máxima universal, mas é comum e acontece porque algumas dietas envolvem privações relacionadas à quantidade e à qualidade dos alimentos, e esse ato deliberado de privação faz com que o indivíduo ganhe uma espécie de força interior que podem beneficiar outras áreas da vida.
Resistir ao impulso da comida pode nos ajudar a ter controle de nossa razão, por isso concordo parcialmente com a frase do início da Carta, já que a busca pelo prazer através da comida e da bebida nos condena à superficialidade, nossa mente perde a capacidade de se aprofundar em assuntos mais densos, afinal, há o prazer instantâneo a poucos metros da boca.
É claro que sem reflexão o jejum pode ser inútil, como alerta São Máximo:
Que sentido há em empalideceres o rosto pelo jejum se depois o tornas lívido de ressentimento e de inveja? Que sentido há em não beberes vinho, se depois te embebedas com o veneno da raiva? Que sentido há em te absteres de carne, a qual foi criada para ser comida, ao mesmo tempo que dilaceras os membros de teus irmãos pela malícia e com calúnias?
Isso não é um incentivo para deixar o jejum e a abstinência de lado, mas para utilizá-lo como um remédio para nossas doenças interiores.
Ontem, por exemplo, saí para almoçar num restaurante e o peixe não estava bom, tinha fome e fiquei de mau humor por um bom tempo; depois, voltando para casa, percebi que estava focando na coisa errada, o dia estava agradável, estava na companhia de quem amo e havia comida na mesa, o que é uma bênção por si só. Em vez de prestar atenção no que meu marido falava, minha mente estava embotada, preocupada com o prazer que deixaria de sentir. Não é tolo e vergonhoso fechar a cara por essa razão?
Outras manifestações da gulodice
Ouso dizer que a gula não precisa se limitar ao que comemos e bebemos, podemos manifestá-la de outras maneiras:
Quando não nos contentamos em assistir a apenas um episódio da série e a maratonamos;
Quando mal acabamos de ler um livro e já passamos para outro;
Quando compramos mais roupas do que realmente usamos, acumulando peças no armário;
Quando devoramos conteúdos nas redes sociais sem pausa, rolando infinitamente o feed;
Quando trabalhamos sem descanso, sempre buscando mais e mais tarefas para preencher o dia;
Quando falamos sem parar, sem deixar espaço para o silêncio ou para ouvir o outro;
Quando buscamos experiências novas sem apreciar plenamente as que já vivemos;
Nesses casos não queremos preencher nosso estômago, mas nosso espírito inquieto e, às vezes, entendiado. Privar-se de comida, bebida ou de alguma dessas atitudes citadas acima pode nos ajudar, não acha?
Há quem use como desculpa aquela história de que “restrição gera compulsão”, mas será que isso faz sentido num mundo de fartura em que temos tudo ao nosso alcance? Ifood, compras online, redes sociais, plataformas de streaming. Talvez o que nos torne compulsivos é justamente essa disponibilidade irrestrita de coisas para consumir e que, se não tomarmos cuidado, nos causa a sensação de que estamos sempre ficando “para trás”.
Católico ou não, acho importante que você jejue e/ou abstenha-se daquilo de que gosta e perceba quais sensações e emoções o vazio outrora preenchido gera. O vazio vai surgir? Sim, e vai doer, mas é um convite para a introspecção, para que você veja onde está depositando sua felicidade e propósito de vida. Sem comida ou outros estímulos exteriores talvez você seja capaz de refletir sobre aspectos mais profundos – como tem tratado as pessoas, se tem sido maledicente, impaciente, mesquinho; se tem trabalhado direito; se tem cumprido seus deveres com diligência ou se tem sido preguiçoso.
Então, por que não tentar, de vez em quando, submeter seu corpinho a essas e outras privações? Deixar desejos e prazeres morrerem pode ser uma oportunidade para que novas virtudes e capacidades nasçam — virtudes e capacidades que a comida, a bebida ou o entretenimento excessivo ou incessante estavam impedindo de vir à tona.
Qual é o pior que pode acontecer?
Mateus 26:41